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Psicanálise e formulações religiosas: da origem à contemporaneidade

Postado em por Alessandra Martins

Para entendermos a origem das religiões e de religiosidade num contexto histórico, científico e empírico, é preciso conhecer também e entender a evolução da humanidade, com seus povos e suas culturas.

É um tema bastante controverso, principalmente entre os historiadores, mas, o que é real é que a fé é a linguagem mais antiga do campo humano.

Conhecendo a cidade de Uberaba-MG e reconhecendo Chico Xavier como o maior líder da religião espírita, essa movimentação das pessoas em busca daquele espaço no qual ele escolheu para trabalhar com o acolhimento, os recebendo independente de sua religiosidade, condição social e angústias, como o milagre de cura de doenças físicas, o contato com entes queridos que faleceram, bênção em vida para si e seus familiares e até a fome, já que também nutria as pessoas com alimentação, faço uma associação direta com a psicanálise do acolhimento.

Essa busca continua até hoje, mesmo após quase duas décadas da morte de Chico Xavier. As pessoas vão à cidade para ver o museu, o lugar onde ele ficava, escrevia e dormia, a Casa da Prece e até mesmo, para conhecer seu túmulo.

Essa movimentação, independente de crença, já é suficiente para buscarmos explicações e entender que a fé, mesmo sem comprovações visíveis aos órgãos do sentido, é um fator curioso e gera inquietação no comportamento humano.

A fé surgiu da necessidade dos homens para o entendimento dos fenômenos diversos da natureza e sobre si mesmo e é o momento de surgimento do misticismo na tentativa de explicação dos fenômenos através do pensamento mágico, das crenças e das superstições, substituindo o medo pela única explicação que tinham da natureza e em alguns aspectos da vida humana.

Assim, passou-se a acreditar que as tempestades podiam surgir de uma ira divina, a boa colheita era benevolência dos deuses, as desgraças evitadas ou as fortunas aumentadas com alguns rituais importantes destinados ao criador de tudo isso, desenvolvendo a fé na humanidade.

Porém, como essas informações e deduções não foram suficientes para aquietar a curiosidade humana, surgiram várias outras hipóteses, passando de uma geração para a outra. 

Também, é bem curioso o diálogo que em sua origem, a psicologia possuía com as formulações religiosas. Esta é ligada diretamente à filosofia e à cosmologia, que buscavam entender as experiências místicas, atividades de pessoas, experiências na vida, sonhos, vida materialista, os impulsos, em fim, tudo o que tem de peculiaridade no comportamento das pessoas em diferentes situações.

O símbolo, escolhido para representá-la, um tridente, também tem um grande significado ligado às formulações religiosas em diversas culturas. 

O símbolo, lê-se "psi", é uma das letras do alfabeto grego, considerado um símbolo solar, mágico, de poder, força e foi muito utilizado por gladiadores na antiguidade. Também, origina a palavra psykhè, que designa o estudo da alma, o que não é físico, e, uma das histórias mais importantes da mitologia grega que retrata a união entre o amor e a alma, o mito de Eros (o amor) e Psique (a alma). 

No hinduísmo ele é o deus, Shiva, utilizado para descarregar a energia que cria, transforma e destrói, assim como o equilíbrio, inércia e movimento. E ainda, representa diferentes significados, variando de acordo as culturas e povos, dá pré-história até a atualidade.

Porém, psique, na psicologia contemporânea, passou a ter conotação de fenômenos que ocorrem na mente humana para evitar ligações com religião e a espiritualidade.
E, atualmente, esse prefixo, "psi", designa o nome de várias profissões e ofícios, não só psicólogo, e é o tripé que sustenta a ciência do comportamento em suas três vertentes, a comportamentalista, a humanista e a psicanalítica. 

E, ainda em formulações mais recentes, psi, é um aplicativo ligado à informática, uma unidade de medida de pressão e estudado também pela economia em outro sentido.

Freud criou a Psicanálise em 1900 e a defendeu como uma nova ciência, sem vínculos e confusões com a medicina, política ou religião. Considerava que estas questões são fortes e antigos anseios da humanidade e a cultura da civilização necessita da renúncia, coação, repressão e o domínio dos próprios desejos, já que, assumidamente judeu, ele vinha da premissa de julgamento, exclusão e perseguição.

Na psicanálise, de acordo com Freud:

O homem pré-histórico, nas várias etapas de seu desenvolvimento, nos é conhecido através dos monumentos e implementos inanimados que restaram dele, através das informações sobre sua arte, religião e atitude para com a vida - que nos chegaram diretamente ou por meio de tradição transmitida pelas lendas, mitos e contos de fadas -, e através das relíquias de seu modo de pensar que sobrevivem em nossas maneiras e costumes. (Freud, Totem e Tabu (1913~1924)).

Porém, ele não só "inventou" essa nova ciência. Ele consolidou o método através da teoria, técnica e prática, que foi amplamente estudada, revista e fundamentada. 

Neste contexto de homem dentro de uma sociedade, o termo narcisismo, onde o objeto de amor coincide com autoamor, é um dos conceitos mais importantes estudados por Freud porque, assim como  é importante desenvolver o autoamor, é importante desenvolver a quebra desse narcisismo para se perceber dentro da sociedade como ser único.

Freud escreve, em seu texto Uma dificuldade no caminho da psicanálise [1917]: "Proponho-me a escrever como o narcisismo universal dos homens, o seu amor-próprio, sofreu até o presente três severos golpes por parte das pesquisas científicas", denominada a quebra das feridas narcísicas.

Nas primeiras de suas pesquisas, o homem acreditou, de início, que o seu domicílio, a Terra, era o centro estacionário do universo, com o sol, a lua e os planetas girando ao seu redor. [...] A destruição dessa ilusão narcisista associa-se, em nossas mentes, com o nome e a obra de Copérnico, no século XVI. Muito antes dessa época, porém, já os pitagóricos haviam lançado dúvidas sobre a posição privilegiada da Terra, e, no século III a.C., Aristarco de Samos havia declarado que a Terra era muito menor que o sol e movia-se ao redor deste corpo celeste. Mesmo a grande descoberta de Copérnico, portanto, já fora feita antes dele. Quando essa descoberta atingiu um reconhecimento geral, o amor-próprio da humanidade sofreu o seu primeiro golpe, o golpe cosmológico.

No curso do desenvolvimento da civilização, o homem adquiriu uma posição dominante sobre as outras criaturas do reino animal. Não satisfeito com essa supremacia, contudo, começou a colocar um abismo entre a sua natureza e a dos animais. Negava-lhes a posse de uma razão e atribuiu a si próprio uma alma imortal, alegando uma ascendência divina que lhe permitia romper o laço de comunidade entre ele e o reino animal. [...] Há pouco mais de meio século, as pesquisas de Charles Darwin e seus colaboradores e precursores puseram fim a essa presunção por parte do homem. O homem não é um ser diferente dos animais, ou superior a eles; ele próprio tem ascendência animal, relacionando-se mais estreitamente com algumas espécies, e mais distanciadamente com outras. As conquistas que realizou posteriormente não conseguiram apagar as evidências, tanto na sua estrutura física quanto nas suas aptidões mentais, da analogia do homem com os animais. Foi este o segundo, o golpe biológico no narcisismo do homem.

E o terceiro golpe narcísico, o próprio Freud é o destaque:

[...] o homem sente-se superior dentro da própria mente. Em algum lugar do núcleo do seu ego, desenvolveu um órgão de observação a fim de manter-se atento aos seus impulsos e ações e verificar se se harmonizam com as exigências do ego. Se não se harmonizam, esses impulsos e ações são impiedosamente inibidos e afastados. Sua percepção interna, a consciência, dá ao ego notícias de todas as ocorrências importantes nas operações mentais, e a vontade, dirigida por essas informações, executa o que o ego ordena e modifica tudo aquilo que procura realizar-se espontaneamente. Isso porque a mente não é uma coisa simples; ao contrário, é uma hierarquia de instâncias superiores e subordinadas, um labirinto de impulsos que se esforçam, independentemente um do outro, no sentido da ação, correspondentes à multiplicidade de instintos e de relações com o mundo externo, muitos dos quais antagônicos e incompatíveis. Para um funcionamento adequado, é necessário que a mais elevada dessas instâncias tenha conhecimento de tudo o que está acontecendo, e que sua vontade penetre em tudo, de modo que possa exercer sua influência. E, com efeito, o ego sente-se seguro quanto à integridade e fidedignidade das informações que recebe, bem como quanto à abertura dos canais através dos quais impõe suas ordens. 

E assim, a evolução humana vem sendo crescente e aprimorada. Neste mesmo sentido, as formulações religiosas continuam sendo objeto de investigação em abordagens e dimensões variadas e distintas na vida coletiva, destacando que vários dos conflitos mundiais surgiram a partir de questões religiosas, e também, de caráter político, econômico, territorial, geopolítico, entre outros.

Essas questões, apesar de muito triste na vida das pessoas, tornou a psicanálise ainda mais consistente, pois Freud e os psicanalistas receberam pessoas com sofrimentos e angústias diferentes daquela época, mas reais, e até podemos considerar atuais. E ele continua defendendo o pensamento científico afirmando que "A ciência não é uma ilusão, mas seria uma ilusão acreditar que poderemos encontrar noutro lugar o que ela não nos pode dar." (Freud. O futuro de uma ilusão [1927]).

Já exilado na Inglaterra por causa da guerra, Freud publica, Moisés e o Monoteísmo [de 1937~1939], uma obra controversa, mas que reafirma toda a sua teoria e técnica, incluindo sua posição sobre as religiões, mas, pela primeira vez, o sofrimento do povo judeu. E fala de Moisés como um homem judeu educado pelos egípcios e o sentimento dele como estrangeiro, andarilho e despossuído de lugar. 

Neste sentido, podemos supor que Freud estava manifestando seu inconsciente e sua realidade do terror do nazismo, da morte de milhares de Judeus, do exílio dele e da família para Londres, da queima dos livros em Berlim e da incerteza da vida, já que estava em estágio terminal do câncer, um registro de abertura para o novo.
Ele nunca negou Deus, e sim negou a justificativa da desumanização em nome de Deus. Considerava Deus o protótipo da figura paterna, aquele que possibilita um poderoso amparo e amor incondicional, o que diminui a dor, sofrimento e angústias.

Assim, pode-se afirmar que a realidade no plano psíquico é amenizada, em partes, com as formulações religiosas, já que estas se contrastam com a evolução da ciência, por ser um ato de fé, sem comprovações. 

Também, que se torna difícil para o indivíduo suportar a existência diante do doloroso enigma da morte, crueldade do destino e das forças da natureza, sendo que a religião ajuda no processo de elaboração das suas angústias, devido às suposições de ter.

Assim, essas formulações têm papel esclarecedor e até promovem reconciliação com o sofrimento, na continuidade da existência e de uma vida futura. E, mesmo que esse delírio seja análogo à fantasia, é algo imprescindível para o estudo da origem e causas das neuroses, ou, ao delírio da ciência que, mesmo não conseguindo desvendar e responder tudo, é buscada com total credibilidade. 

As religiões são constituídas por doutrinas, um conjunto de ritos e cerimônias, com um sistema ético, com leis, proibições, regras de condutas e uma comunidade de fiéis, imersos na fé ao que não se vê, na relação de um poder superior, conexão intrapessoal, interpessoal e transpessoal. 

Durkhein (1978, p.228) afirma que "uma filosofia pode elaborar-se no silêncio da meditação interior, mas, não uma fé. Pois uma fé, antes de tudo, é calor, vida, entusiasmo, exaltação de toda atividade mental, transporte do indivíduo acima de si mesmo".

Ou seja, ter fé é algo fundamental para as pessoas, pois validam as variações da vida pessoal ou grupal, além de evidenciar e legitimar, no entanto, a prática da psicanálise como um ato de fé, imperceptível aos órgãos do sentido.

No entanto, em meio a diversas teorias sobre formulações religiosas a característica fundamental da fé é a cura pela vontade, esperança e amor, mesmo variando em gênero, sexualidade e cultura. Acima de tudo, crer no desconhecido, seja em Deus com orações, seja no psicanalista com psicoterapia, o sujeito está sendo acolhido.

Essa prática de acolhida no setting terapêutico transforma os vínculos traumáticos em experiências possíveis de expansão, criação de um ambiente seguro, onde o paciente reconhece partes de si mesmo, uma integração do ego. Segundo Renato Dias Martino [(2018), pag.123] "As maiores descobertas que podemos fazer sobre nós mesmos, o fizemos através de uma autorreflexão, resguardados na segurança afetiva do outro".

É importante salientar que a definição de espiritualidade/religiosidade como "experiência" deve levar em consideração a forma como o sujeito se deixa afetar e como interpreta essas experiências, e o que ela produz enquanto sentido para a sua vida.

Assim, a religiosidade quando bem integrada na vida do sujeito, contribui de forma positiva para a sua saúde mental. O mesmo ocorre na prática clínica da psicanálise.

O psicanalista é o facilitador no processo de autoconhecimento e autonomia do sujeito e, este, refaz suas experiências traumáticas, através da livre associação, recordando, repetindo e elaborando. E não é menos importante do que é a prática religiosa, seja uma mãe abraçar seu filho e rezar pelo anjo da guarda num momento de perigo, assim como, pais receber uma carta mediúnica de um filho falecido.


Referências Bibliográficas

DALGALARRONDO, Paulo. Religião psicopatologia e saúde mental. Porto Alegre: Artmed, 2008. 

DURKHEIN, E. As formas elementares da vida religiosa. Os pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1912.

FREUD, S. Totem e Tabu (1913). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996. 

FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar (1917). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996.

FREUD, S. Uma dificuldade no caminho da psicanálise [1917]. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996.

FREUD, Sigmund. Moisés e o monoteísmo, [1939]. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996.

LOPES, Reinaldo José. Além de Darwin: O que sabemos sobre a história e o destino da vida na Terra. São Paulo: Editora Globo, 2015.

MARTINO, Renato Dias. Primeiros Passos Rumo à psicanálise. 1 ed. São José do Rio Preto - SP: Vitrine Literária Editora, 2018.

MARTINO, Renato Dias. Acolhida em Psicoterapia. 1 ed. São José do Rio Preto - SP : Vitrine Literária Editora, 2018.

NASIO, J.D. Por que repetimos os mesmos erros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.

NEVILLE, Robert. As contribuições de Charles S Pierce para a filosofia da religião contemporânea. Cognitio: revista de filosofia do Centro de Estudos do Pragmatismo da PUC-SP, São Paulo, ano 2001.

ZAFIROPOULOS, Markos. Lacan e Lévi-Strauss ou o retorno a freud (1951-1957). 1ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.