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Psicanálise e os Vedas - consonâncias
Postado em por Victor Paulino Faria
Começo esse texto com a seguinte citação da Brihadaranyaka Upanishad, componente da filosofia milenar indiana conhecida como Vedas: ? - Ora, vê, não se quer bem ao marido por amor ao marido, mas por amor a si quer-se bem ao marido. Ora, vê, não se quer bem à mulher por amor à mulher, mas por amor a si quer-se bem à mulher. Ora, vê, não se quer bem aos filhos por amor aos filhos, mas por amor a si quer-se bem aos filhos. [...] Ora, vê, não se quer bem aos mundos por amor aos mundos, mas por amor à si quer-se bem aos mundos. [...] Ora, vê, não se quer bem aos seres por amor aos seres, mas por amor a si quer-se bem aos seres. Ora, vê, não se quer bem ao todo por amor ao todo, mas por amor a si quer-se bem ao todo.?
O criador da psicanálise, Sigmund Freud (1856 - 1939), se utilizou do mito de narciso para dar nome à dinâmica psíquica que visa a preservação de si mesmo - o narcisismo. A energia despendida nesse processo - de preservação de si mesmo - foi nomeada como libido do ego ou libido de autopreservação¹. É devido ao narcisismo que cada um de nós permanece vivo, tomando os devidos cuidados para que a morte não se apresente precocemente. Entretanto essa morte não é apenas a morte concreta, a morte do corpo físico. O narcisismo é também o mecanismo que se manifesta diante do medo de morrer que não é real, mas de uma morte simbólica que está no campo do psíquico. Este medo é proveniente das experiências de desamparo vividas no passado, na tenra infância, e que são invocadas no presente, em situações do cotidiano em que não há risco de uma morte concreta. O medo desamparo é experienciado como a própria morte. Quando falamos em narcisismo, portanto, é importante não tratarmos o termo como um diagnóstico patológico e sim como uma característica de proteção, em certa medida, tanto da vida física quanto da vida psíquica do sujeito.
A leitura do recorte filosófico indiano, presente no início desse texto, nos aponta a importância do amor próprio para o bem querer do próximo. Ele expõe, citando alguns exemplos, que aquele que se porta diante do outro amorosamente é alguém que ama a si mesmo antes de qualquer outra coisa. Ou seja, o amor narcísico (libido do ego) é condição sine qua non para manutenção do amor ao próximo (libido objetal), como ressalta a teoria freudiana². Se houver um grande desequilíbrio nesse jogo de energias e a libido do ego for quase que inteiramente transformada em libido objetal, haverá um esvaziamento de si mesmo em prol do outro, um autoabandono, tal como acontece nas paixões. Por outro lado, um narcisismo exacerbado transformará o outro em um simples objeto utilitário.
A questão que poderá surgir diante do que foi exposto é, então, de ordem econômica. Quanto de amor narcísico seria saudável? Até que ponto seria considerado egoísmo (excesso de narcisismo) ou a partir de quando se daria o autoabandono característico das paixões? Quais os limites de investimento da libido no próprio ego para que esse investimento não atrapalhe os investimentos em outros objetos? Quais os limites de investimento no objeto para que o ego não seja negligenciado? Qual a medida dessa régua vai permitir ter uma relação saudável consigo mesmo e com o outro, permitir um estar no mundo mais harmonioso? Essas questões todas, que na verdade são apenas uma, não possuem uma resposta exata. Ora, seres humanos não são fórmulas matemáticas. No entanto, há de se pensar que, assim como em uma orquestra onde a consonância dos instrumentos depende da integração harmoniosa deles, o amor também requer essa consonância.
Finalizo o texto com uma breve passagem do texto de Freud, SOBRE O NARCISISMO: UMA INTRODUÇÃO (1914), em que ele nos apresenta uma visão do ego e dos vínculos objetais mais integrada, equilibrada e harmoniosa: [...] um verdadeiro amor feliz corresponde à condição primeira na qual a libido objetal e a libido do ego não podem ser distinguidas.
Victor P. Faria
Psicoterapeuta
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¹ Libido do ego (ou de autopreservação) e libido objetal são as duas formas de libidos que compõem a pulsão de vida, segundo a teoria freudiana [Compêndio de Psicanálise, Freud, 1940].
² É importante mencionar que um narcisismo saudável na fase adulta é o resultado de uma criança que foi adequadamente amparada, cuidada e estimada por seus pais. É uma criança que teve a sua fase de narcisismo onipotente (chamado por Freud de narcisismo primário) bem nutrido/satisfeito pelos seus cuidadores. Assim sendo, o amor que um sujeito tem por si mesmo não depende dele próprio, mas do amor que veio do outro.
Victor P. Faria
Psicoterapeuta
Referências:
FREUD, Sigmund. COMPÊNDIO DE PSICANÁLISE (1940). Obras Incompletas de Sigmund Freud. Ed. Autêntica, 2014.
FREUD, Sigmund. SOBRE O NARCISISMO: UMA INTRODUÇÃO (1914). Obras Completas de Sigmund Freud, vol XIV. Ed. Imago.
UPANISADAS: os doze textos fundamentais. Traduzido por Adriano Aprigliano. Ed. Edipro, 2020.
[Esta e outras leituras estão disponíveis no blog www.acolhendopensamentos.com]

